1897
Quando Elie Benard faleceu, em 1897, o seu apelido era sinónimo de qualidade, requinte e prestígio.
Escreveu-se no jornal O Século que a morte do “conhecido industrial e comerciante”foi “muito sentida, pois gozava de grandes e legítimas simpatias pelos seus hábitos de trabalho e rectidão de carácter”.
Dotado de um espírito empreendedor, Elie Benard fundara também, à roda de 1870, na rua que mais tarde recebeu o nome de Garrett, uma elegante loja onde os lisboetas compravam luvas, perfumes, loiças e brinquedos – artigos em grande parte provenientes de Paris – participando ainda, uns anos depois, na criação da Fábrica a Vapor Progresso, uma inovadora padaria mecânica e fábrica de massas italiana à qual associou a sua Padaria Franceza da rua do Loreto.
A importante actividade comercial de Elie Benard valeu-lhe o ser agraciado com a Ordem de Cristo, sendo também nomeado fornecedor das casas reais portuguesa e italiana.
Anúncio da Padaria Franceza da rua do Loreto, publicado no Diario Illustrado em 1900, destacando o fabrico de croissants (Biblioteca Nacional de Portugal).
Assinatura de Elie Benard (Arquivo do Patriarcado de Lisboa).
Retrato a óleo de Elie Benard, elaborado à roda de 1891-1892 pelo pintor espanhol Salvador Escolá (colecção privada).
O estabelecimento de perfumaria, luvaria, loiças e brinquedos de
Elie Benard, na rua Garrett (Arquivo Municipal de Lisboa).
Elie Benard num retrato fotográfico da autoria de seu irmão Célestin, datável da transição do terceiro para o quarto quartel do século XIX (colecção privada).
Anúncios da Padaria Francezade Elie Benard na rua do Loreto, publicados no Diario de Noticias em Agosto e Setembro de 1868 (Biblioteca Nacional de Portugal).
1868
Oriundo de uma família de padeiros e conserveiros franceses, Elie Benard estabeleceu-se em Lisboa com os pais e irmãos, em meados do século XIX, e aqui abriu, na rua do Loreto, uma Padaria Franceza, inaugurada a 6 de Setembro de 1868.
Era aí que“o público lisbonense” encontrava “excelente pão fino”e “bolacha de todas as qualidades”, e ainda “pãezinhos quentes à moda de Hamburgo”.
Ao longo dos anos, na sua Padaria Franceza da rua do Loreto, Elie Benard produziu e forneceu pão abiscoitado, pão à Garibaldi, pão à parisiense, pão das quatro nações, pão de luxo para chá, pão à francesa, pão flute parisiennes, pão vienense, para além dos brioches à parisiensee de “diferentes bolos fabricados pelo sistema francês”.
Lisboa estava seguramente rendida às novidades e o Chiado revia-se com toda a certeza nas sofisticadas designações daqueles pães e doces, cosmopolitas e de gosto requintado.
Perspectiva da rua do Loreto, vendo-se sobre a esquerdao edifício de três vãos,com os números 21 a 25, onde funcionou a Padaria Francezade Elie Benard (Arquivo Municipal de Lisboa).
A primitiva fachada da Patisserie Benard na rua Garrett, numa fotografia de Joshua Benoliel do princípio do século XX (Arquivo Municipal de Lisboa).
Anúncio destacando a especialidade em bolo-rei da Patisserie Benard, publicado no Diario Illustrado em 1904 (Biblioteca Nacional de Portugal).
Anúncio da Patisserie Benard, na rua Garrett, publicado no Almanach Palhares para 1904 (colecção de Lourenço Correia de Matos).
1902
Pedro e Casimiro Benard asseguraram a continuidade dos negócios do pai e durante cinco anos a Padaria Franceza fundada por Elie Benard permaneceu na rua do Loreto. Foi nesse período que se anunciou, pela primeira vez, o fabrico dos famosos croissants, então apelidados de “pão francês, especial para almoços”. Mas em 1902 os dois irmãos cederam aquele estabelecimento e separaram os ramos de actividade do falecido progenitor. Casimiro Benard ficou com o negócio alimentar e transferiu-se para a rua Garrett, agora sob a designação de Patisserie Benard. Esta nova loja tinha a particularidade de se situar exactamente ao lado da perfumaria e luvaria criada por Elie, de que passava a ser responsável Pedro Benard. Os dois irmãos, estabelecidos lado-a-lado, podiam assim beneficiar da mesma clientela sofisticada. Pouco depois, o Diario Illustrado reconhecia: “Pode dizer-se que a Patisserie Benard é hoje o «rendez-vos» da nossa sociedade elegante”.
Fotografiade Joshua Benoliel sobre o fabrico de broas na Pastelaria Benard (Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
1914
Apesar do clima de instabilidade e incerteza que resultava da mudança de regime em Portugal e do iminente conflito mundial, em 1914, a Patisserie Benard procedeu a obras de remodelação que vieram “transformar, embelezar e modernizar o seu estabelecimento, dotando a cidade com uma loja modelo no seu género”. Data da então a fachada que hoje, em boa medida, ainda se mantém.
“Sem perder o recato, sem deixar os seus hábitos honestos, transformou-se na aparência, mudou de trajos, mudou de modos”– foi assim que a Ilustração Portuguesa descreveu a mudança da mulher lisboeta nos primórdios do século XX. E na verdade, “as damas, nas suas visitas elegantes ao Chiado, desejavam ser vistas na Benard”, onde um aprimorado “serviço de chá, café, leite e chocolate”convidava a estar, a conversar e a conviver.
Entre as múltiplas iguarias que nessa época se fabricavam, tinham destaque as “broas em todas as qualidades”e reconhecia-se que “é uma verdadeira especialidade o delicioso bolo-rei”.
Reportagem sobre a renovada Pastelaria Benard, na rua Garrett, publicada em Novembro de 1914 na Illustração Portugueza (Hemeroteca Municipal de Lisboa).
Uma factura da Patisserie C. Benard datada de 1919 (colecção da Pastelaria Benard).
O interior da remodelada Patisserie Benard (colecção da Pastelaria Benard).
Anos 20
Nos anos vinte, os clientes da Patisserie Benard encontravam um “grand assortiment de gateaux et biscuits, bonbons et dragées”, figurando o estabelecimento entre as “premières maisons de Paris, Italie et Suisse”. O serviço exterior (o moderno catering!) prestado pela Benard ganhava crescente reputação e por isso anunciava-se: “Lunchs pour mariage, dêjêuners et diners en ville sur commande”.
Nos menus desses acontecimentos –entre os “chauds”, os “froids”e os “entremets”–, pontificavam confecções tão originais e aprimoradas como os “croquettes de poulard trufée”, o “jambon d’York á la gelée”ou ainda os “filets de Boeuf glacê aux cressons”, a que se podiam seguir os “petits fours á la Française”, as “surprises á la Portugais e”e os “fruits glacês á l’Italienne”–que cosmopolitismo! –, tudo regado com “vins, liqueurs et Champagne”da melhor qualidade! O francês, como se vê, continuava a ser a língua requintada por excelência, mas a verdade é que a designação se veio a alterar progressivamente para Pastelaria Benard depois da Câmara Municipal de Lisboa passar a exigir um pagamento às lojas que conservassem os seus letreiros identificativos em língua estrangeira.
1932
Interrompendo um ciclo familiar de longas décadas e várias gerações consagradas à actividade de pastelaria e confeitaria, Casimiro Benard decidiu, em 1932, trespassar a Pastelaria Benard a um novo proprietário, a firma Manuel José de Carvalho, Limitada. Pormenor importante do negócio: autorizava-se a continuidade do seu nome. Três anos depois, a mesma empresa adquiria a vizinha e hoje desaparecida Pastelaria Marques, conservando-se distintas as identidades de cada estabelecimento.
De carácter “esperto e activo”, possuindo “o dom natural da simpatia”, Manuel José de Carvalho, juntamente com os seus sócios, levou por diante a Pastelaria Benard durante quase quatro décadas. Mantendo como actividade primordial a “indústria e comércio de pastelaria”, assumiu também como ponto forte “o fornecimento de lanches para casamentos, banquetes, etc.”, muitos dos quais servidos na Casa do Leão, no castelo de São Jorge, tanto a entidades oficiais como a diversas personalidades.
Numa e noutra actividade, a Pastelaria Benard continuou a ser uma referência de qualidade e elegância no quotidiano social lisboeta.
Almoço oferecido pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa aos presidentes das Câmaras do distrito, servido pela Pastelaria Benard na Casa do Leão em 1958 (Biblioteca Nacional de Portugal).
(Uma perspectiva do interior da Pastelaria Benardnos anos trinta do século passado (Arquivo Municipal de Lisboa).
Militares e populares no 25 de Abril de 1974 junto à Benard, na esquina da rua Serpa Pinto com a rua Garrett (Arquivo Municipal de Lisboa).
Maria Augusta Montes com os seus filhos Maria Augusta e Américo Joséna Benard, em meados dos anos oitenta, assinalando um aniversário da sua aquisiçãoe reabertura (colecção da Pastelaria Benard).
1983
O falecimento de Manuel José de Carvalho e de Antonino Fernandes Dias – o sócio que era o seu braço direito –, a par da agitação política e da instabilidade económica que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, fizeram a Pastelaria Benard entrar num período de dificuldades, visíveis até na própria degradação do espaço. Nessa época, o estabelecimento não tinha fabrico, vindo os bolos e demais produtos da vizinha Marques, em tabuleiros que percorriam, na rua Garrett, as dezenas de metros que separavam as duas lojas.
No princípio da década de oitenta, constava que o fecho da Benard estaria iminente. Maria Augusta Montes, uma comerciante há muito estabelecida nas imediações do Chiado, não se conformava, porém, com a ideia de Lisboa perder a histórica pastelaria, lugar da sua predilecção. Contra a opinião dos filhos e apesar de não conhecer o ramo de actividade, decidiu avançar para a sua compra, concretizada em 1983.
Renovadas as instalações com um projecto que devolveu ao espaço todo o requinte e bom gosto de outrora, recuperado o fabrico próprio e com recurso apenas a ingredientes naturais, Lisboa pôde continuar a frequentar a Benard.
2018
Celebramos 150 anos desde que Elie Benard abriu a Padaria Franceza da rua do Loreto e 116 após o seu filho Casimiro Benard transferir o estabelecimento para a rua Garrett com o nome de Patisserie Benard. Para além de uma história rica em acontecimentos, com raízes que mergulham em França e se desenvolveram no coração da capital portuguesa, atravessando regimes, revoluções, modas e tantas gerações que deambularam pelo Chiado, o património da Pastelaria Benard é também feito das experiências e das recordações que são parte da história individual de cada uma das pessoas que, pelo tempo fora, por aqui foram passando. Hoje, a par dos clientes habituais de há longas décadas e daqueles que redescobrem o lugar outrora frequentado por pais e avós, a Benard acolhe também novos visitantes, portugueses e estrangeiros, que percorrem diariamente o ambiente frenético e cosmopolita do Chiado do nosso tempo.